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sexta-feira, 22 de junho de 2012

Marta, a alagoanidade e o incômodo




É sempre assim. Basta iniciarem uma entrevista com a Marta, que me sobe certo incômodo. As perguntas, que variam apenas em ordens ou expressões, seguem o mesmo padrão: Onde você nasceu? Como foi sua infância? Quais os primeiros clubes em que você jogou?

Na verdade essas são apenas perguntas de praxe. Para entrevistadores e expectadores, importa pouco a origem de Marta. É aí que a sensação incômoda bate. Como aquele corte minúsculo no dedo, que você nem lembra onde está até um pingo de água bater e arder tudo. Ela diz que nasceu no interior de Alagoas, num lugar tão pobre quanto a sua infância. Sua luta, percebemos, foi individual. Aliás, o ponto chave foi ter saído de sua terra natal. Ou era isso, ou provavelmente teria o futebol apenas como hobby, nos rachas de fim de semana no campinho do bairro.

Ao sair do nosso estado, Marta seguiu o conselho que é popularmente dado por aqui. “O reconhecimento profissional é fora, aqui tem campo não”. A gente ouve assim que tem uma profissão em mente. Não importa muito se jornalismo, arquitetura, medicina ou o esporte. “Aqui não dá, o negócio é sair”, dizem os deuses do oráculo.

"Mas foi beirando estrada a baixo que eu piquei a mula / Disposto a colar grau na escola da natura / Se alguém me perguntar, não tenho nada a dizer / Pois eu pra me realizar preciso morrer /Você me deu liberdade pro meu destino escolher / E quando sentir saudade poder chorar por você / Não vê minha terra mãe que estou a me lamentar / É que eu fui condenado a viver do que cantar / A-la A-la Ala Alagoas..."

(A música é do Djavan e fala sobre Alagoas. Tem exemplo melhor? Aliás, tem outro: Alguém aqui lembra do Pepe, alagoano, NATURALIZADO Português?

Pior do que ser incentivado a sair, só mesmo não ser acolhido ao ficar. Semanas atrás, ao entrevistar um ator alagoano, senti o peso carregado por ele ao seguir o destino oposto ao dos colegas de ramo. Valorização cultural muito pouca. Reconhecimento mínimo. Auxílio, só de quem também é da mesma área. Apesar de tudo, como ele mesmo disse, não seria feliz em outro lugar. “Apesar de tudo eu gosto daqui, gosto muito das pessoas, dessa bondade e alegria que é inerente ao povo da nossa terra, adoro retratá-los nas minhas produções”, explicou.

Sinto isso na Marta, no Djavan, nos atores, artistas plásticos e artesãos. São (e somos) todos alagoanos, “apesar de”. Apesar de travar um embate com aqueles que deveriam agir como facilitadores. Apesar do descaso com a arte regional. Apesar dos braços cruzados da maioria, que só reclama e não sai do lugar.

Mas voltemos ao incômodo. Se é que eu deixei de falar dele. O corte no dedo arde outra vez, uma menina com talento visível para o futebol, sonha em conhecer a Marta e através disso treinar no mesmo time em que a alagoana. É só pela fama da jogadora, e com a ajuda de um popular programa de televisão, que a adolescente consegue um teste no clube.

Temos uma brasileira tida como melhor do mundo cinco vezes seguidas. O futebol feminino no Brasil não é levado a sério. No mesmo clube em que o mais famoso e bem pago jogador nacional atua (Santos, do Neymar), houve a suspensão do time feminino – as chamadas Sereias da Vila – por falta de verba. (É falta de patrocínio ou de interesse?)

Temos uma alagoana tida como melhor do mundo cinco vezes seguidas. Existe futebol feminino em Alagoas? Digo futebol pra valer, por que time formado por atletas que se dividem em outros empregos, tem e muito. Auxiliar dá trabalho. É muito mais rápido fazer um café, um banner, pegar carona na imagem de talento e perseverança que a jogadora construiu sozinha, deixando tudo para trás. É publicidade mais rápida.

O incômodo surge feito um corte no dedo quando noto a falta de importância que nos dão lá fora. Quando até o futebol masculino sofre para se erguer, numa precariedade absurda, enquanto Martas, Franciscos, Pepes, estão encobertos pela miséria e falta de oportunidade. Ou quando a sorte grande se manifesta somente na “exportação”. E é uma pena que esse mesmo governo que tanto diz estar interessado em acabar com a pobreza e a violência, não enxergue que a educação e o esporte também são ótimos aliados nesta batalha.